sexta-feira, junho 23, 2006

Há muito, muito tempo, eras tu uma criança...*

I.
O Instituto do Desporto de Portugal (IDP) encerrou, só em 2005, 195 parques infantis da responsabilidade das câmaras municipais.

Uma senhora institucionalmente composta explicava na televisão que um dos motivos que levaram ao encerramento dos parques prendia-se com a falta de cumprimento das regras (apeteceu-me ligar-lhe e perguntar: a sério?), nomeadamente os baloiços de ferro e estruturas afins do mesmo material, causadoras de inúmeros acidentes com crianças, por vezes de grande gravidade.
Até aos cinco anos morei num 2.º andar que tinha a maior parte das janelas viradas para um parque infantil. Às vezes até chegava a pensar que se me esticasse mais um bocadinho de nada, conseguiria tocar o topo do escorrega com as mãos. Felizmente nunca passei da teoria à prática.
Mas passei a maior parte das minhas tardes naquele parque, com o Russo e com a Tucha. A minha avó vigiava-nos da janela (quando não era do banco mesmo ali ao lado) e gritava-nos advertências sábias

parem com isso! isso não é para andar em pé! desçam daí! mais devagar...!

que nos faziam rir antes de as ignorarmos.

Os baloiços eram de ferro. A geração anterior devo tê-los conhecido ainda cor-de-laranja, mas a minha já só viu vestígios da pintura. Eram mais as lascas e as manchas de ferrugem que a tinta. Metíamo-nos em pé em cima do assento, agarrávamo-nos às correntes fortes e abanávamos o corpo para a frente e para trás para ganhar velocidade. O objectivo era dar, praticamente, a volta completa à barra horizontal que suportava o sistema. Nunca caí. Nem o Russo, nem a Tucha. Nunca apanhei tétano. Nem eles, que eu saiba.

O escorrega era de ferro. O latão da «pista» por onde deslizávamos de rabo, de cabeça ou deitados estava amolgado do princípio ao fim. E durante a descida os calções ficavam, não raras vezes, presos nos parafusos que já espreitavam para o lado de cá do metal. Quando nos lançávamos de cabeça também acontecia chegarmos à meta e ganhar uma boca cheia de areia, em virtude dum qualquer despiste por falta de jeito. Rasguei algumas peças de roupa, confesso, ouvi a minha avó repreender-me vezes sem conta (e depois o meu pai e a minha mãe a repreenderem-me vezes sem conta também, porque a minha avó acabava sempre por lhes contar), mas nunca me magoei a sério em nenhuma das acrobacias. Nem o Russo, nem a Tucha. E também não foi no escorrega que apanhámos tétano. E a areia que comemos não trazia hepatites.

Os arcos eram de ferro. Três semicírculos de tamanhos diferentes, enterrados na terra, onde podíamos dar cambalhotas até perder os sentidos. Dar cambalhotas ou simplesmente ficar pendurados de cabeça para baixo, presos pelos joelhos, a varrer o chão com o cabelo. Também já tinham sido de outras cores, creio, mas por aquela altura apenas sobressaía o castanho do ferro. Nunca rachei a cabeça nas reviravoltas da brincadeira. Nem eles. E tétano... nem vê-lo.

Havia ainda uma outra estrutura, cujo nome nunca soube, igualmente de ferro. Trepávamos por ela acima, saltávamos dela abaixo. Também os parafusos daquela ameaçavam desertar dos encaixes e muitas vezes ficávamos com as mãos e/ou os pés presos entre as barras estreitas. Nunca partimos nenhum braço ou perna, e não foi a ferrugem da «estrutura sem nome» que nos obrigou a fazer o teste do tétano.

Mas um dia... a Tucha partiu um dente. Em casa, a correr à volta da mesa, a fugir do irmão. Tropeçou e aterrou de cabeça na esquina duma cadeira. Eu e o Russo não conseguíamos parar de rir, na tarde seguinte, quando ela apareceu.

Por esta altura, o parque já deve estar remodelado de acordo com os regulamentos de segurança. Um dia destes passo lá para o ver e para me submeter voluntariamente a um valente ataque de saudosismo.



Depois dos cinco anos fui morar para outro lado. Não havia parque infantil por perto, mas havia uma estrada sem trânsito nas traseiras. Eu brincava na rua. Com a Beta e com a Sofia. Coisas de gaja, claro. Saltávamos à corda, jogávamos ao elástico, tínhamos Botas Botildes e Limões. Às vezes ficávamos só sentadas no passeio, com as pernas estendidas no alcatrão, a trocar ganchos, autocolantes ou a escrever disparates na estrada com pedaços de tijolo. Recolhíamos já de noite, quando se levantava vento e nos chamavam para jantar. Não tínhamos medo de estar na rua porque talvez não existissem motivos para isso. Ainda hoje não tenho medo de andar na rua, nem de noite, mas acho que isso é resultado de uma inconsciência que me ficou presa cá dentro desde essa época. Ou se calhar chama-se inconsequência.
Interditaram os parques infantis por falta de condições de segurança e o estudo revela que as crianças passam a maior parte do tempo a brincar em casa, porque temos um «fora de casa» que mete medo. Por estas tristes razões, hoje quase me passou pela cabeça a ideia de que um dia também fui criança.



*Onde estás, Grande Zé Cid?

1 Comments:

Blogger Anne Marie said...

Muito interesssante! Vou investigar o blog! Gostei já do que li!
Beijos!

sábado, agosto 26, 2006 1:13:00 da manhã  

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